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O menino que queria estudar

“Doutora, chegou um caso aí meio complicado...”, diz a estagiária.


Voltada para o computador, ao mesmo tempo em que assinava uma pilha de papéis e olhava a fila de estagiários a minha frente, parei para ouvir o tal caso complicado.


A estagiária, então, antes mesmo de iniciar o relato do caso, diz em tom aliviado:


“Doutora, o caso é complicado sim, mas graças a Deus não é nosso. A assistida terá que ingressar com uma ação contra a Escola Técnica Federal, e isso não é aqui. É na Defensoria Pública da União, né?”


Sim, o caso era federal. Ufa...


Volto para minha pilha de papéis, aliviada também. Não vou negar: quem precisava, naquela altura do dia, de (mais) um caso complicado?


De onde estou ouço o apelo da senhora ao receber a orientação da estagiária: “Entendi, minha filha. Mas será que lá eles vão resolver o meu problema? Sabe o que é: estou muito cansada e para quem é pobre tudo fica muito difícil, entende?”


Nesse momento, resolvi sair da minha zona de (des)conforto e, num misto de curiosidade e compaixão, fui me apresentar para aquela senhora e tentar entender o porquê de tanta angústia.


Foi então que conheci a história de D. Maria, que poderia ser a mesma de tantas outras mães.


Desde nova exerço uma espécie de atração que faz com que as pessoas falem sobre seus problemas comigo. Isso acontece em qualquer lugar. No ônibus, na fila do caixa eletrônico, na sala de espera do médico... Sempre foi assim. Às vezes penso que carrego um crachá que diz “pode falar que eu te escuto”.


Aliás, aprendi logo nas minhas primeiras aulas no curso de mediação que, para ser um bom mediador, é preciso saber ouvir. Ao longo do tempo percebi que, além de saber ouvir, é preciso gostar de ouvir.


Aqui não foi diferente: foi preciso ouvir a história da D. Maria para compreendê-la. Foi preciso gostar de ouvi-la.


“Rafael tem 15 anos. Mora comigo numa comunidade carente. O que ele mais fez no último ano foi estudar para essa prova, Doutora.” Orgulhosa, D. Maria me contava que Rafael tinha sido aprovado para um curso de Informática na Escola Técnica Federal.


A essa altura, por óbvio, eu já esquecera que aquele caso não era de minha atribuição. Tudo que eu mais queria era poder fazer algo pela D. Maria e pelo Rafael.


“Ele estava tão feliz, Doutora... tão orgulhoso de ter passado nessa prova...”, falava ela com a cópia do jornal em mãos, onde se lia, em destaque, a nota de Rafael.


“Sim, D. Maria, que maravilha ter um filho estudioso. Parabéns!”, disse eu


Mas essa história de superação, de um menino que queria muito estudar, foi interrompida por um erro. Um erro na emissão de seus documentos pela sua antiga escola e que impedia a matrícula no tão sonhado curso de informática.


O que fez, então, D. Maria? Foi procurar quem poderia consertar esse erro para que aquele pesadelo acabasse e, finalmente, Rafael começasse a estudar.

Imagem Pixabay


Achou.


A pessoa responsável desculpou-se. Erro corrigido. D. Maria volta à escola, então, com todos os documentos já retificados para matricular Rafael.


Mas a vida nem sempre é justa... E o prazo de matrícula já tinha expirado.


“Mil desculpas!”, foi a única coisa que lhe disseram na Escola Técnica Federal. “A senhora não tem mais como matricular o seu filho aqui. Procure a Defensoria Pública. Quem sabe há algo que eles possam fazer?.”


E assim, D. Maria chegou até a mim, praticamente à espera de um milagre, mas nem sempre milagres acontecem. Muitas vezes também não existem soluções jurídicas que resolvam todos os problemas e conflitos das pessoas.


Alguns telefonemas e contatos foram feitos. Ouvi algumas vozes que insistiam em ecoar um belo e sonoro “ não “ como resposta aos meus pedidos. Nada poderia ser feito, repetiam, afinal, o prazo de matrícula já se encerrara.


O que fazer diante do impasse? O que fazer para que D. Maria não ouvisse de mim, mais um pedido de desculpas seguido da justificativa de que nada mais poderia ser feito naquele momento?

A resposta está em 7 letras. EMPATIA.


Eu que já havia me colocado no lugar da D. Maria por várias vezes, no lugar do Rafael por tantas outras, precisava, agora, que o Diretor Maciel também o fizesse. Eu tinha uma chance.


Foram 15 minutos num telefonema. Contei novamente a história. Falei da luta do Rafael, da luta da D. Maria, do que o esperava se entrasse na Escola. E também do que o esperava se não entrasse...Do que aquela sala de aula representava na vida daquela família. A resposta viria no dia seguinte. E veio logo cedo, num telefonema, quando eu estava a caminho do trabalho:


“Doutora, nós decidimos que o Rafael não pode ser punido mais uma vez. Isso não é justo. Obrigado por me fazer enxergar isso.”, disse Maciel. E continuou: “Diga a D. Maria para vir ainda hoje com os documentos. Amanhã Rafael estará dentro da sala de aula.”


Sorri. Ciente de que, em vez de milagres, muitas vezes o que precisamos mesmo é de um mundo com mais escuta e empatia.

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