A Escuta do Não na Mediação
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Uma das Campanhas desse Carnaval - “Não é Não” - contra o assédio sexual, guardando todas as diferenças relativas aos temas, a ‘força’ da palavra ‘Não’ me levou a pensar na escuta do mediador ao ouvi-la de um participante que, ao chegar à mediação e receber as informações necessárias para fazer uma escolha informada, diga que não, não quer participar.
Embora o instituto da mediação esteja se tornando cada vez mais conhecido da população em nosso país, em especial para os que entram com processos junto ao Judiciário ou mesmo quando se busca a Defensoria Pública onde, em ambas as instituições, dependendo do tema que trazem, podem ser encaminhados à mediação, a grande maioria das pessoas não sabe o que é por nunca a terem vivenciado.
Ocorrendo ou não os encaminhamentos (nos casos de busca espontânea), o primeiro momento, além do acolhimento, é o de explicitar que a primeira etapa, conhecida como pré-mediação, tem por objetivo informá-los sobre o procedimento da Mediação, esclarecer quaisquer dúvidas que tenham relacionadas a isso e identificar, a partir das informações oferecidas e do diálogo inicial com os mediadores, se é possível considerar como um recurso que os possa atender naquilo que gostariam de tratar e que motivou suas vindas até ali.
Entre as informações a serem oferecidas, uma em especial a destacar é justamente o fato de ser um processo voluntário, ou seja, as pessoas vêm e ao obterem informações sobre o que é e como funciona, optam por participar da mediação, se assim o desejarem e, a qualquer momento, caso sintam necessidade, poderão interromper.
Através dos diferentes posts deste Blog temos tido a oportunidade de ler sobre os princípios da mediação. Além da voluntariedade dos participantes, outros princípios concorrem para que torne o estar em mediação um movimento na vida das pessoas que abra possibilidades para suas expressões, tendo por cenário um ambiente que se pretende acolhedor e ‘protegido’ para tal.
Nesse sentido já está estabelecido que tudo o que for conversado durante a mediação fica regido pelo princípio da confidencialidade (Códigos de Ética, Regulamento Modelo e Resoluções – CONIMA, FONAME, CNJ) e, nesse sentido, nada do que for tratado ali poderá servir como prova em um eventual processo judicial, favorecendo que os mediandos sintam-se mais à vontade para falarem abertamente acerca de suas preocupações e tenham maior liberdade para se expressar e tratar dos assuntos necessários as suas questões. O compromisso da confidencialidade inclui a todos que participam da mediação: mediadores, mediandos, advogados e Defensores Públicos, entre outros que eventualmente participem.
Sem a intenção de esgotar aqui todas as informações e princípios compartilhados na pré-mediação, espera-se que ao final desta etapa e após ouvir cada participante no que os trouxe até ali, se chegue ao entendimento conjunto (potenciais mediandos e medidores) se há interesse e possibilidades para que a mediação continue o seu curso. Escutar um Sim de cada participante é fundamental para que o mediador se sinta autorizado a dar continuidade à condução desse processo.
No entanto, algumas vezes, a equipe de mediação se depara com um Não. ‘Não quero’. ‘Não vai adiantar’. ‘Não adianta nada disso’, o que não tão raramente, perpassa na equipe um sentimento de frustração (é comum estar dois mediadores à mesa e, possível, encontrar de um a três mediadores em estágio de formação como observadores). Voltarei a esse sentimento da equipe mais adiante.
Nesse momento das minhas reflexões e escrita parei tudo e resolvi, por curiosidade, sem o rigor de uma pesquisa, fazer um levantamento ‘relâmpago’das ‘Não Adesões’ nos casos que acompanhei. Encontrei um percentual de 13% nos casos atendidos.
Não é o objetivo de entrar no mérito de uma avaliação sobre esse percentual, até porque não tenho, nesse momento, parâmetros comparativos com um estudo aprofundado, embora, diga-se de passagem, possa ser um bom tema a ser pesquisado. Vou citar apenas algumas temáticas e subjetividades envolvidas.
Nesses casos estavam incluídos temas como: (i) injúria, difamação e ameaça, onde as pessoas envolvidas não se colocavam disponíveis a abrir mão de um julgamento judicial para dialogar e onde demonstravam a premência do juiz “ver as provas” e dizer “quem está certo ou errado” e "acabar logo com isso". A questão de segurança por um lado e ter o seu ‘nome limpo’ e a dignidade resgatada e reconhecida, por outro lado, eram metas que se mostraram inadiáveis e urgentes sugerindo que só o Judiciário poderia lhes prover isso; (ii) convivência entre familiares (ex.: avó com neto, pai com filho, entre outros) concorrendo, por exemplo, a posição prévia do advogado sobre a “inadequação” de se realizar uma mediação e fortalecendo a posição semelhante de sua cliente; (iii) acordo padrão sem margem de negociação proposto por uma empresa e não aceito pela outra parte; (iv) um dos participantes denotando comprometimentos comportamentais e mentais que dificultavam a compreensão do que se tentava dialogar e combinar; (v) temas envolvendo violência doméstica onde as “feridas” pareciam ainda estar expostas apesar dos anos transcorridos, entre outros...
Há casos em que uma das partes, ou mesmo ambas, precisa(m) de um tempo maior para ‘colocar em ordem’ as informações e emoções que vêm à tona na reunião de pré-mediação, cabendo aos mediadores, como ‘guardiões do processo’, estar atentos para que não se encerre a possibilidade da mediação antes das partes, por elas mesmas, poderem expressar o seu “Não” a partir de uma decisão bem informada, podendo, ainda, considerar, com calma, as opiniões e percepções de seus advogados e/ou Defensores Públicos. Isso se pode dar em intervalos propostos em uma mesma sessão ou em agendamento para uma nova.
Na minha vivência, geralmente ocorre de apenas um dos potenciais mediandos não querer aderir à mediação. Como não é possível fazer mediação com apenas uma das partes, o processo fica, então, inviabilizado em sua continuidade, o que não exclui e não se ‘deleta’ o que naquele espaço e tempo pôde ser conversado, trocado e sinalizado. O falar de si tendo por escuta pessoas que escutem com respeito e atenção em um ambiente totalmente voltado para isso, pode fazer diferença muito positiva para quem passa por essa experiência.
Voltando ao sentimento de frustração da equipe ao se deparar com a Não Adesão, é importante que a equipe de mediadores possa aproveitar o que tem de melhor, a possibilidade de dialogar entre seus pares sobre o que vivencia nas interações com os clientes e, também, com os próprios colegas. Sabiamente os sentimentos precisam ser explicitados, acolhidos e digeridos pela equipe em seus momentos tão fundamentais de pré e pós sessão, ou seja, antes e depois de estar com os clientes à mediação.
Um conjunto de frases que junto com a equipe ouvi de Clarisse (nome fictício), uma ‘candidata à mediação’, me ajudou muito a refletir sobre essa possibilidade de algum cliente não querer dar continuidade à mediação, considerando, ainda, uma escuta atenta da equipe e as tentativas de se perceber as necessidades e os limites dela assim como os nossos em desejar realizar a mediação.
Ela nos disse: o que vou fazer com tudo o que vivi, o que sofri, todos esses anos, tendo que me virar sozinha para manter, cuidar e decidir sobre o que seria melhor para a vida da minha filha? Onde coloco toda a raiva, ressentimento, sentimento de traição e de decepção? Ela se questionava que dar o OK para a realização da mediação significaria abrir mão de todos esses sentimentos para compor com o pai de sua filha que reivindicava mais tempo com ela entre outras questões. A percepção que nos traduziu: perco tudo e ele ganha de ‘mão beijada’ o que fiz sozinha?
Esse tema e essas expressões talhadas por Clarisse para quem gosta de atuar em mediação familiar seria, se posso dizer assim, um cenário muito bem vindo a ser trabalhado. Para quem ouve desse lugar de mediador, possivelmente identificaria como um ótimo caso para mediação, já imaginando quais recursos poderiam ser utilizados para fazer escoar cada interrogação. Só temos que considerar que quem está no outro lugar é... outro e não o nosso saber sobre o que nos parece apropriado.
Cuidar para que nossas ‘Clarisses’ tenham um conhecimento informado sobre as possibilidades que uma mediação oportuniza para essas e outras questões é nossa função e é sempre possível compartilhar com ‘elas’ que o recurso da mediação pode não lhes atender agora (se esse for o caso) mas sabem onde o encontrar caso precisem e queiram fazer uso dele.
Falar, portanto, sobre nossa frustração a esses ‘Nãos’ é abrir possibilidades para novas narrativas e nos surpreendemos, também positivamente, com as diferentes expressões que surgem das diferentes pessoas que compõem a nossa equipe.