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“A Árvore da Vida”

Já se passaram alguns meses desde a postagem A Escuta do Não na Mediação, que gerou por parte de uma leitora querida, algumas indagações e ‘provocações’ sobre o alcance da mediação em relação a questões ‘macro’, polêmicas, que causam grande impacto nas vidas das pessoas e que vêm ocorrendo profusamente no mundo e, no Brasil, envolvendo temas específicos sobre gênero, violências nas escolas entre elas o bullying, fake news, refugiados, para citar alguns.


A partir desse estímulo, os temas subsequentes que venho trazendo ao Blog têm procurado atender e considerar, em alguma medida, essas indagações.


Como temos visto, também, em alguns artigos deste Blog, não só a Mediação, mas outros recursos de Facilitação de Diálogos como os Processos Circulares, as Práticas Restaurativas e a Comunicação Não Violenta, por exemplo, podem ser úteis e adequados para se trabalhar com situações adversas, de conflitos, em diferentes contextos e cenários.


Busquei, então, em minha rede de relacionamentos, alguém que já tivesse feito ou estivesse realizando alguma atividade interativa com e entre refugiados, tema de escolha deste post.


A intenção é dar mais visibilidade a inciativas ainda pouco conhecidas como eficazes que se colocam como possibilidades de recursos de promoção de interação, comunicação, diálogo, de ação conjunta, do “estar com” pessoas e, mais especificamente no relato que será apresentado, referidas a solicitantes de refúgio, de diferentes nacionalidades.


Leonora Corsini[i] a quem apresento, agora, aos leitores do Mediando Por Aí, no seu desejo de colaborar de alguma forma com os refugiados e solicitantes de refúgio e sensível a esta questão da linguagem, que irá desenvolver adiante, se ofereceu para um trabalho voluntário na Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro. Junto com outra colega pesquisadora facilitou grupos de conversa quinzenais, onde utilizavam como recursos “círculos restaurativos de diálogo e rodas de conversa colaborativas, com o propósito de que os solicitantes de refúgio pudessem se conhecer melhor, se apresentar, trocar experiências, compartilhar soluções e conhecimentos, estreitar vínculo e juntos desenvolverem linguagens mais apropriadas para a condição tão especial em que vivem”[ii].


Antes, porém, de mergulhar na narrativa desse trabalho, consideramos oportuno fazer uma distinção técnica entre refugiados e migrantes; embora todas as pessoas que deixam o lugar onde vivem e cruzam as fronteiras internacionais para ir viver em outro país sejam indistintamente imigrantes, de acordo com a Convenção de Genebra de 1951, convocada pela ONU após a II Guerra Mundial o termo ‘refugiado’ se aplicará a toda a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país em que residia como resultado daqueles eventos, não pode ou, em razão daqueles temores, não quer regressar ao mesmo[iii].


Em 1984 foi firmada na Colômbia a Declaração de Cartagena, instrumento regional que tem como foco a proteção e os desafios humanitários enfrentados por refugiados. Ela é conhecida por expandir a definição de refugiado estabelecida pela Convenção de 1951 e já foi confirmada pela ONU, OEA e adotada pela legislação nacional de 14 países. Pela Declaração de Cartagena, foi incluída no rol de situações que justificam a solicitação de refúgio, a ocorrência de graves e generalizadas violações de direitos humanos.


Vamos, então, conhecer um pouco desse mundo com as histórias que a própria Leonora nos conta abaixo.




Uma das conexões que me permite articular o tema dos refugiados e imigrantes às abordagens e práticas sobretudo as que se ancoram nas propostas colaborativas, é a problemática da língua e da linguagem. Faço aqui uma distinção: língua é aquilo que já está constituído, um código que vamos “aprendendo” na medida em que nos relacionamos com outros falantes desta língua; e linguagem é o que nos constitui, instrumento primordial de nosso estar no mundo.


Outra conexão é a aposta nas comunidades de aprendizagem dialógica que parte da premissa de que aprender é um evento social e interativo, uma ação conjunta que ocorre por meio do diálogo, do “estar com”.


O refugiado que chega e pede acolhimento sem nada ter além de uma língua que não mais lhe pertence e sem poder usar plenamente a língua de quem o acolhe, demanda de quem o recebe disposição para acolhê-lo com hospitalidade incondicional, bem como disposição de aprender com ele e de produzir juntos, colaborativamente, uma linguagem comum. Além disso, a imposição de uma língua é sempre uma colonização, daí a necessidade de estarmos atentos às tentativas de “colonizar” o outro, mesmo em nome de um desejo genuíno de acolher, humanitariamente, um estrangeiro.


Em outro viés, a abordagem colaborativa de conversas entre grupos de diferentes pode ser descrita como um sistema de linguagem no qual as pessoas se envolvem colaborativamente em relacionamentos e conversas, empreendendo um esforço mútuo em busca de tornar realidade o que existe como possibilidade. Quando falamos em linguagem – palavras ditas e não ditas, sons, declarações, gestos, sinais e outras formas de fala e ação – pensamos em tudo o que permite construirmos nossos mundos e nossos conhecimentos. A linguagem e a experiência andam juntas por isso damos significado e interpretamos nossas experiências por meio da linguagem.


O trabalho narrado a seguir, como já mencionado, foi desenvolvido junto à Cáritas Diocesana do Rio de Janeiro, onde grupos de refugiados se encontravam todas as semanas para ter aulas de português. Desses grupos participaram refugiados oriundos de lugares tão diversos e distantes entre si como Congo, Nigéria, Serra Leoa, Senegal, Colômbia, Cuba, Haiti e Afeganistão.


Por sugestão dos profissionais da Cáritas, os grupos foram divididos entre homens e mulheres. Isto foi explicado a partir de uma percepção de diferença cultural: enquanto as mulheres latinas são mais falantes e proativas, as africanas tendem a se expressar menos quando estão na presença dos homens. Assim, convidamos para um primeiro círculo as mulheres dos dois grupos da aula de português: um grupo em que a maioria usa o francês como segunda língua, e um grupo que usa inglês ou espanhol.


Era um grupo numeroso, elas chegaram com curiosidade e sem entender muito bem o que estavam fazendo ali. Tínhamos preparado um roteiro para a conversa, explicamos o propósito do encontro, combinamos as regras, explicamos o bastão da fala[iv], conversamos sobre curiosidades e expectativas e propusemos uma dinâmica em que colocamos gravetos, sementes e outros objetos em uma bolsa colocada no centro da roda para que uma a uma fossem até o centro e interagissem com o material, da forma que preferissem. Com a ajuda das professoras que participaram para colaborar na tradução, elas começaram a seguir a proposta, até que algumas foram ficando mais agitadas, falando entre si, e começaram a dizer que aquilo era um problema, que na África era complicado mexer com aquelas coisas – paus, sementes, galhos – que parecia magia, que não gostavam daquilo etc. E que também não entendiam porque estavam ali, que tinham necessidades muito concretas como arrumar emprego, ter dinheiro para pagar aluguel, alimentar os filhos, mandar ajuda para a família que tinha ficado nos países de origem.


Naquele momento, iniciamos uma conversa com elas sobre o que faziam quando tinham dúvidas, quando não entendiam alguma coisa que era solicitada, ou pediam uma coisa e recebiam outra. Algumas falaram que enquanto não entendiam não conseguiam fazer nada; outras disseram: perguntar, perguntar, perguntar... Ao início sentimo-nos um tanto desconfortáveis, achamos que talvez não tivéssemos sido muito hábeis, que tínhamos agido como as “gringas” que pensam que sabem o que o outro precisa, que não tínhamos sido sensíveis às diferenças culturais e que a ideia de usar os galhos não tinha dado certo e não deveria ser repetida. Mas o retorno que recebemos da Cáritas é que as mulheres tinham saído animadas e falantes do encontro, e que isto era uma coisa nova.


Na roda dos homens, que aconteceu duas semanas depois, cuidamos de não usar galhos, sementes, madeira, qualquer objeto que pudesse evocar ‘magia’ ou ‘feitiçaria’. Resolvemos então usar a música como disparador da conversa. Selecionamos alguns clipes de músicas variadas, algumas produzidas através de encontros de músicos africanos com músicos de outros lugares do mundo, e desta vez saímos com um sentimento bem diferente, de que tinha sido mais produtivo e prazeroso para eles participar da conversa. A partir daí fomos fazendo encontros mais curtos, de 30 minutos de duração, sempre alternando homens e mulheres, disparando temas como música, canções favoritas, comidas, pratos que gostavam de cozinhar, com quem tinham aprendido, etc. Havia um receio por parte da Cáritas de que tocar em lembranças dos lugares de origem, dos familiares, da vida que tinham, pudesse ser ruim para eles. Mas o retorno que tanto os homens quanto as mulheres nos deram foi de que tinha sido muito bom poder recordar essa parte de suas vidas.


Nessa ocasião recebemos da Caritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro (CARJ) o pedido de preparar uma atividade que pudesse compor o diagnóstico participativo[v], momento em que representantes do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e do Comitê Nacional de Refugiados (CONARE) de Brasília, além de pessoas ligadas às secretarias de direitos humanos do estado e do município e outros profissionais envolvidos com refugiados visitam a Cáritas e conversam com eles, procurando saber se os serviços e auxílios estão ajudando, o que precisam que mude etc.


Nossa ideia foi sugerir uma atividade em que os refugiados fossem os protagonistas, que ajudassem a expressar e fazer a avaliação deles. A professora de artesanato, que coordenava um grupo de mulheres havia proposto a confecção coletiva de um painel que foi batizado “Árvore da Vida”, um pouco diferente da proposta que conhecíamos, mas que acabou sendo um trabalho que mobilizou bastante as mulheres, que ficaram muito animadas e orgulhosas do resultado.


Em resposta à solicitação da CARJ sugerimos oferecer àqueles que não fossem participar da “Árvore da Vida” um trabalho que usasse a metáfora da pipa, nos moldes da Pipa da Vida[vi] (Kite of Life) uma metodologia de integração desenvolvida pelo australiano David Denborough. Embora não tenha dado tempo seguirmos todo o processo, da execução dos desenhos das pipas à exposição, apresentação e apreciação pelo grupo, avaliamos que foi um momento muito rico de expressão de sentimentos, expectativas, sonhos, esperanças, e que a experiência foi bem aproveitada, no sentido de eles se mostrarem naquilo que são bons, suas habilidades, seus planos, conferindo um outro protagonismo e autoria às suas demandas.


Os resultados desta experiência foram apresentados no I Congresso Latino Americano do Certificado Internacional em Práticas Colaborativas – Distintos Contextos e Diversas Populações (São Paulo, 6-9 de novembro de 2013), com o título “Os refugiados e a construção dialógica de uma linguagem”.






[i] Psicóloga, terapeuta de família e pesquisadora, realizou pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ) onde desenvolveu uma pesquisa sobre refugiados. Vem se dedicando nos últimos anos a estudos que entrelaçam uma visão de mundo sistêmica, as propostas teórico-metodológicas das práticas colaborativas e narrativas e a questão das migrações mundiais no cenário contemporâneo.


[ii] CAMPELLO, Luciana, CORSINI, Leonora. Círculos de diálogo e oficinas na Cáritas do Rio de Janeiro. 2013, Rio de Janeiro, RJ.


[iii]https://pt.wikipedia.org/wiki/Conven%C3%A7%C3%A3o_das_Na%C3%A7%C3%B5es_Unidas_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados. Acesso em 15/11/2018.


[iv] Elemento-chave do círculo que vem da “antiga tradição dos índios norte-americanos de usar um objeto chamado bastão da fala, que passa de pessoa para pessoa dentro do grupo e que confere a seu detentor o direito de falar enquanto os outros ouvem”. PRANIS, Kay. Processos Circulares. Teoria e Prática. Palas Athena, 2010.


[v] O diagnóstico participativo é realizado anualmente em todas as regiões em que o ACNUR atua por meio de organizações parceiras, como as Caritas Arquidiocesanas entre outras. Naquele ano de 2013, 160 refugiados e solicitantes de refúgio – metade deles mulheres – participaram das diferentes avaliações realizadas no país. Entre os temas levantados estavam inserção no mercado de trabalho, questões de documentação, acesso a moradia e serviços de saúde. Também foram apontadas questões referentes à análise dos pedidos de refúgio a precariedade do atendimento nos serviços públicos de saúde. Para uma participante nigeriana, o domínio do idioma português, os custos para traduzir documentos e a dificuldade de encontrar um emprego eram os principais desafios no Brasil. Dos encontros saíram também reivindicações que se tornaram, como a recente decisão do governo brasileiro de retirar a palavra “refugiada” da carteira de identidade de estrangeiros que vivem no Brasil nesta condição, substituindo-a pelo termo “residente”.


[vi] A “Pipa da Vida” é uma metodologia desenvolvida para apoiar famílias de migrantes e refugiados que vivenciam conflitos intergeracionais em seu processo de adaptação. O trabalho com pipas começou em St. James Town, um grande conjunto habitacional localizado no centro de Toronto, Canadá, onde vive uma expressiva população de imigrantes oriundos de diversos países da África, bem como sul da Índia, Sri Lanka e Malásia. Os membros dessa comunidade descrevem como algo significativo em suas culturas originais a arte de empinar pipas, que envolve compreender as direções do vento e tirar partido disso. Desta maneira, a pipa se transforma em uma rica fonte de metáforas para muitas famílias migrantes, fornecendo excelente mote para conversas sobre o que as pessoas têm de mais valioso, suas habilidades, talentos, crenças e conhecimentos para a vida. A Pipa da Vida tem se mostrado um instrumento muito útil para que migrantes e refugiados possam se conectar com seus melhores recursos para enfrentar situações adversas e mudanças de vento.



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