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Uma amiga precisando de ajuda 2

No dia 02 de dezembro passado, abordei sucintamente as similitudes e diferenças entre a Mediação de Conflitos e a Justiça Restaurativa e prometi tratar da diferenciação entre a Justiça e as Práticas Restaurativas, abordando mais um dos temas inerentes ao pedido de ajuda.



A Justiça Restaurativa surgiu como prática e movimento social nos anos 70. Adveio da relação direta com os movimentos sociais da contestação das instituições repressoras, da descoberta da vítima, da exaltação da comunidade e do feminismo.


Está radicada em dois pensamentos aparentemente contraditórios e paradoxais. O abolicionista, enquanto movimento de contestação às instituições repressivas, e o vitimológico, visando colocar a vítima em lugar central.

Comporta, portanto, duas preocupações: com quem sofreu a violência e com quem a praticou. É originária das sociedades comunais – as pré-estatais europeias e as coletividades nativas – que privilegiavam as práticas de regulamentação social pela manutenção da coesão do grupo, focalizando os interesses coletivos e não os individuais.


Os programas restaurativos foram instaurados antes da formulação de um conceito para a justiça e as práticas restaurativas, que se estabeleceram antes de uma formulação teórica.


A JR é compreendida como um processo através do qual todas as pessoas envolvidas em um ato que causou ofensa reúnem-se para decidir coletivamente como lidar com as circunstâncias presentes, buscar a satisfação pela restauração dos danos e a transformação da situação, do conflito decorrente desse ato e suas implicações para o futuro, concedendo a vítima um lugar central e trazendo a noção de satisfação vivenciada por todos os envolvidos (princípio da reparação).


Segundo a Resolução 225/2016 do CNJ, a Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado (nos termos descritos na resolução).


A Resolução define as Práticas Restaurativas como a forma diferenciada de tratar as situações de conflitos e danos, o Procedimento Restaurativo como o conjunto de atividades e etapas a serem promovidas objetivando a composição das situações danosas e, a Sessão Restaurativa como todo e qualquer encontro, inclusive os preparatórios ou de acompanhamento, entre as pessoas diretamente envolvidas nos fatos conflituosos. Define como Enfoque Restaurativo a abordagem diferenciada das situações de conflito e danos compreendendo os seguintes elementos: participação dos envolvidos, das famílias e das comunidades; atenção às necessidades legítimas da vítima e do ofensor; reparação dos danos sofridos; e o compartilhamento de responsabilidades e obrigações entre ofensor, vítima, famílias e comunidade para superação das causas e consequências do ocorrido.


Para além da definição, as Práticas Restaurativas são percebidas como o meio pelo qual a JR é materializada, concretizada e ganha de efetividade. É através das práticas metodológicas que se torna possível alcançar os objetivos e finalidades da Justiça Restaurativa.


É sempre necessária criteriosa análise da adequabilidade metodológica, uma etapa fundamental nos procedimentos em JR que inclui a clareza quanto aos objetivos, motivações, finalidades e questões relativas à segurança de todos, assim como a avaliação da utilidade do encontro, a verificação da presença dos requisitos inerentes ao equilíbrio quanto a oportunidade de fala e a possibilidade do atendimento dos interesses e necessidades dos participantes em sua totalidade.


Entre os valores universais da JR estão o empoderamento, a participação, a autonomia, o respeito e a busca de sentido e pertencimento, tanto no que se refere à responsabilização pelos danos causados quanto às necessidades deles decorrentes.


As principais metodologias aplicadas à JR no Brasil são a Mediação Restaurativa, a Conferência de Grupo Familiar e os Processos Circulares, que se assemelham quanto à etapa preparatória criteriosa, na qual verificam-se a presença dos pressupostos para a instauração do procedimento restaurativo: a voluntariedade, a prévia admissão da existência do fato/autoria do ato e o desejo de corrigir o feito. As três iniciam-se com convites para participar, não cabendo qualquer tipo de coação. Há liberdade para participar ou não, estar e permanecer conforme a vontades dos envolvidos.


São comuns as confusões entre as metodologias especialmente, entre aquelas em que as pessoas são organizadas no formato circular e que têm origem e inspiração em tradições de povos nativos, como os Processos Circulares (Navajos) e as Conferências de Grupo Familiar (Maoris). Ambas convergem em seus propósitos e viabilizam o processo de tomada de decisão em conjunto e por consenso, mantém em comum o objetivo de funcionar como um dispositivo de apoio aos envolvidos em conflitos, de convidar todos à assunção de responsabilidades, de promover mudanças e de incluir a vítima em posição central que lhe permita apontar seus interesses e necessidades e garantindo-lhe uma participação ativa nas decisões quanto a restituição, ressarcimento, reparação ou restauração. Diferem quanto aos participantes, condução e recursos utilizados.


A Mediação Restaurativa opera segundo os princípios e valores da Justiça Restaurativa. Traz a consciência de que há uma vítima e necessidades a serem atendidas. Trabalhando a dimensão humana do conflito, considera a intenção e as consequências advindas do ato danoso, aborda a experiência vivenciada pela vítima, ofensor e as relações existentes. O mediador, que tem a atribuição de conduzir o processo, focaliza o modo como as relações serão continuadas entre a vítima e o ofensor e suas redes de pertencimento. Apoiando o processo de geração de soluções autoras (pelas pessoas envolvidas no fato gerador do dano e diretamente impactadas).


As Conferências de Grupo Familiar trabalham a dimensão humana do conflito em matéria penal de forma organizada que possibilite ao ofensor expressar a sua compreensão acerca do que aconteceu (extensão) e possibilite a vítima narrar a experiência vivenciada, os danos sofridos e os impactos gerados em sua vida. Os suportes tanto da vítima e ofensor também têm a oportunidade de expressão quanto ao ocorrido, tendo um coordenador com a função de facilitar o diálogo e conduzir o diálogo voltado ao entendimento e a busca de soluções que atendam a todos. Nas Conferências de Grupo Familiar, os representantes das instâncias formais de controle, tais como a polícia, advogados da justiça juvenil, assistentes sociais, estão presentes como participantes indispensáveis nessa modalidade de reunião, ainda que eventualmente ela seja coordenada por alguém da comunidade.

Na Nova Zelândia e na Austrália, a regra geral é a de que as Conferências de Grupo Familiar sejam conduzidas por um coordenador do sistema de Justiça Juvenil, exercendo as funções judiciais e as de facilitação da reunião, sob observação de defensores leigos que atuam como garantidores do atendimento e respeito aos traços culturais dos envolvidos.


Os Processos Circulares trabalham as relações e violações sofridas por todos na dimensão humana do conflito. O Círculo é compreendido como um lugar (espaço/tempo diferenciado) “forte ou suficiente para conter” raiva, frustração, dor, sofrimento, tristeza, alegria, euforia, contentamento, verdades e paradoxos, conflitos e divergências, visões de mundo diferentes e mesmo o silêncio. Segundo os autores do campo, o Círculo abre espaço para a fala e a escuta qualificadas. Têm forte potencial para o desenvolvimento de uma rede informal de suporte a partir da crença em uma responsabilidade individual e comum a todos quanto ao que ocorre no âmbito comunitário. A decisão coletiva considera os compromissos que o ofensor assume (o que ele deve fazer) e também o que ele (ofensor) pode ou necessita em termos de apoio para ter êxito nas ações de reparação. Nos Círculos comungam-se a ideia de que os participantes se coloquem em um lugar distinto do institucional, ou seja, prescindam das garantias e do poder que suas atribuições institucionais geram. Por essa razão, o facilitador do Círculo é um guardião do espaço, que não adota postura de gestor.


O ponto crucial dos espaços restaurativos, independentemente da metodologia, refere-se a quem assume o mandato de conduzir o encontro. A capacidade de intervir o mínimo e de manter a imparcialidade (esperada) dos facilitadores, coordenadores e mediadores e dos demais participantes. Este é um item de permanente cuidado.

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