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"Mamãe, quem é deus?"*

“Mamãe, quem é deus?”

Ai caramba, as perguntas estão ficando difíceis.

Lembrei de quando eu estudei sobre Bateson. Gregory Bateson, biólogo, antropólogo, psicólogo, cientista. Ele foi tudo isso e quando o vejo dando uma palestra ou entrevista só enxergo um senhorzinho tranquilo, sorridente, de olhar atento e curioso. Bateson era um observador. Observava uma pedra, uma minhoca, uma cadeira, uma conversa. E se perguntava o que todos os seres - especialmente os seres vivos - tem em comum? “Qual padrão conecta o caranguejo a lagosta, a orquídea a prímula, e todos eles a mim? E eu a você?”

Bateson percebeu que nosso mundo é feito de relações. Todos os seres se relacionam. E a essência de cada ser, o que cada um tem de mais relevante, não passa pelo que são, mas por suas relações.

Tomemos um exemplo aleatório – uma bactéria. O que é uma bactéria? Posso dizer que trata-se de um microorganismo unicelular. Entender sua estrutura física e química. Pesquisar como foi descoberta. Mas com todas essas informações, não chego ao principal - sua função. Sua relação com outros seres. Há bactérias que provocam doenças. Outras são usadas para fabricar alimentos. Há aquelas que auxiliam outros seres na função digestiva.

Seres se relacionam com outros seres e também com os ambientes em que estão inseridos. Só existimos inseridos em contextos.

A bactéria que habita o intestino da minha filha está inserida no seu sistema digestivo. São interdependentes. O corpo da minha filha, com seu sistema digestivo e suas bactérias, está inserido na nossa casa. Na escola. Na praia. Em inúmeros ambientes, onde outros seres, grandes e microscópicos, convivem. E se relacionam.

Bactéria, criança, família, planta, pedra, minhoca, praia, cidade, planeta. Cada uma dessas unidades é composta de partes menores que se relacionam. Cada uma se relaciona com os outros seres com que compartilham o ambiente. Cada uma se relaciona com o contexto maior em que está inserida. Seres, suas micropartes e os ambientes em que (con)vivem se relacionam constantemente na dança da vida.

Não podemos entender o funcionamento do intestino sem perceber a dinâmica das bactérias, o corpo que habitam, os alimentos que aquele corpo ingere. Não podemos entender como funciona uma determinada escola sem olhar para as relações entre alunos, professores, funcionários, coordenação, para o bairro em que está situada. Não podemos entender o significado de uma palavra ou uma frase sem atentar para o contexto em que foi utilizada. Não podemos entender a dinâmica a de uma família numa mesa de mediação sem olhar para cada um dos componentes daquele grupo, inclusive para o mediador. Todos os seres são parte de algo maior e são compostos por unidades menores. Mudanças nas dinâmicas das unidades menores afetam as maiores e vice-versa. Seres e contextos são interdependentes.

Estamos todos interligados.

Bateson nos convida a enxergar a divisão das coisas em partes como artificial e aleatória. Separações, definições, limites, são colocados pelos seres humanos de forma arbitrária. Somos parte do ambiente em que vivemos. Relações que oprimem, humilham, destroem outros seres levam a degradações ainda maiores. “O organismo que destroi seu ambiente destroi a si mesmo”.

Em 2019, quando as notícias terríveis engolem a gente, quando não temos tempo de nos recuperar da lama tóxica e somos atropelados por uma enchente, um feminicídio ou uma chacina, o que eu tenho a te dizer, filha, é que pra mim – pra mim - deus é aquilo que nos contecta a todos os outros seres. Cada um chama de um nome. Cada um sente de uma forma.

“Deus é conexão, filha. É aquilo que liga todas as cois...”

“Mamãe, eu vou fingir que deus é o vovô.”

E lá foi ela se fantasiar de borboleta.

* As citações estão no filme “An Ecology of Mind”, de Nora Bateson

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