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A mediação entre botões e memórias

“Quero $1000 pelo dano que ele me causou”, disse a senhora o que havia procurado o setor de mediação do juizado de pequenas causas do Harlem (NY). Daquele instante, pensei: “estou gastando uma fortuna para mediar um caso de botão de paletó?“ Estávamos em 1997, eu havia sido aprovado para cursar o mestrado em Direito na Universidade de Columbia. A professora Carol Liebman, que fundou a clínica de mediação, havia aberto uma exceção e eu tinha me tornado o primeiro latino-americano a cursar aquela clínica. De um lado, estava muito feliz com a oportunidade de mediar casos após treinamento longo e intenso na clinica. Ao mesmo tempo, um dos primeiros casos envolvia esta senhora que havia começado sua manifestação indicando o valor que gostaria de receber em razão ter um dano a um botão de um paletó. Curiosamente, naquele momento pensei no meu avô: “o que Henrique Gomma pensaria do seu neto estar gastando o dinheiro da herança para mediar botões? “ Meu avô, fugiu de um campo de trabalhos forçados na Alemanha em 1938. Ele nunca teve acesso à educação por sua etnia judaica. Em 1939, ele veio ao Brasil apenas com uma mala, sem um único diploma, mas com sua habilidade de falar seis idiomas – decorrentes de auto aprendizado. Opa, como referíamos a ele, trabalhou arduamente para construir um patrimônio e permitir que todos os seus oito netos pudessem estudar nas melhores universidades do mundo (entre elas, Harvard, Berkeley, Columbia entre outras). Com os recursos do meu avô, eu estava cursando um caro programa de mestrado nos Estados Unidos...e mediando uma questão de botões!

O gerente da lavanderia quando ouviu daquela senhora, forte com os seus mais de 70 anos de idade, que queria $1000 de indenização em razão de um botão de paletó que havia sido descascado durante a limpeza, demonstrava visível irritação em sua linguagem corporal. E a senhora continuou: “este era o melhor terno do meu marido. Ele, um herói de guerra, lutou no Vietnã e sempre serviu honrosamente o seu país”. O gerente levava a mão ao rosto contraído, como em um gesto de autocontrole para não a interromper – afinal ele havia concordado com esta proposta na declaração de abertura dos mediadores. “Esta foi a única peça de roupa que guardei do meu marido”, disse a senhora antes de um breve silêncio.

A quietude fez com que aquela senhora se sentisse confortável para continuar. Ela percebeu que todos estávamos atentos ao que estava para ser compartilhado. “por que guardar uma única peça de roupa?” pensávamos os mediadores. Em um breve momento, o gerente iniciou uma interrupção – certamente no impulso de tentar acelerar a mediação. Ele recebeu uma comunicação não verbal com as mãos dos mediadores acompanhada de um olhar com um misto de respeito e compaixão. Sentimos que ele compreendeu nossa sugestão de que não estávamos tratando de $1000 e sim de algo muito mais precioso: memórias. Em seguida a senhora tinha indicado que o marido havia falecido há um pouco mais de um ano e que ela estava cuidando de seu melhor terno, que ela tirava e por vezes deixava respirar por sobre a cama para que não ficasse com cheiro de armário. Nesse instante o gerente já estava com um discreto sorriso de alívio pois ele já não estava mais tenso com a possibilidade de alguém estar tentando prejudica-lo. Ele certamente já tinha outra hipótese para o que havia levado aquela senhora a procurar a justiça de pequenas causas.


Terminado o discurso daquela senhora, como praticado durante o nosso treinamento, perguntamos ao gerente se ele gostaria de compartilhar algumas considerações. Ao que ele respondeu que sempre se esforçou muito para atender seus clientes da melhor forma possível e fazer com que eles se sintam respeitados. O gerente aproveitou a oportunidade para dizer que não havia sido procurado antes sobre aquela questão e que se isso tivesse ocorrido teria prazer em conversar com aquela senhora para achar uma solução. Após algumas trocas de perspectivas e rejeições de propostas pelo gerente de pagar pelo botão danificado, os mediadores trouxeram o personagem mais importante da mediação para participar da solução: o falecido marido.


“A senhora conhecia razoavelmente bem o gosto de seu marido?” perguntamos como mediadores. A senhora respondeu com orgulho: “conhecia seu gosto melhor do que ninguém, e ele também conhecia meus gostos – sempre foi um bom marido” respondeu Teresa – aquela senhora que a cada interação mostrava-se mais viva e segura de seu propósito. “A senhora falou que ele a acompanhava frequentemente em atividades quando estava aposentado, será que ele a acompanharia para a loja de botões se ainda estivesse conosco?” perguntamos como mediadores. “Sim, ele certamente iria comigo e não apenas me acompanharia, mas ouviria minhas sugestões”, respondeu Teresa. “A senhora considera possível ir a uma loja de botões para escolher um conjunto de botões que fosse do agrado de seu marido Pedro?” perguntamos. Aquela senhora então compreendeu que poderia tratar a questão do paletó como se Pedro, seu marido, ainda estivesse vivo e aceitou a proposta de $300 que há poucos minutos havia recusado para poder comprar botões de reposição”. Após o resumo, em poucos minutos os interessados perceberam que estavam com seus interesses alinhados. A senhora, quando pediu $1000 dólares pelo botão descascado, de fato, estava apenas dizendo: “esse paletó é de grande valia para mim e dar atenção a ele significa realçar o significado da minha vida hoje: valorizar e celebrar a memória de meu marido. O gerente aprendeu que atender bem clientes está mais relacionado com compreender o que os move: seus propósitos e o que traz significado às suas vidas.


Como mediador, compreendi que mediar uma questão de paletó poderia ser uma lição mais preciosa do que todo o dispêndio com o curso de mestrado. Auxiliar pessoas a resolverem de forma construtiva os conflitos de interesse que afetam suas motivações de vida e, por conseguinte, seu senso de propósito possui um valor inestimável – independente de valor de causa ou custo para o Estado de cada processo. Certamente se estivesse vivo, meu avô consideraria muito positiva a minha participação em um processo que valorize o ser humano. Ele também confiaria nas minhas opções profissionais.


Em suma, Tereza saiu da mediação com o sentimento de que seu marido a acompanha nas suas mais básicas atividades, como ir ao armarinho para comprar botões de reposição. O gerente, saiu com a lição de que uma atividade fundamental de sua lavanderia pode ser sim ouvir e conectar com seus clientes. Eu, sai da mediação com a certeza de que o meu avô, cuja memória também me acompanha até os dias de hoje, venceu o nazismo: gerou descendentes que realizaram muitos dos seus sonhos e estão engajados em uma luta na qual se busca afirmar que ninguém deve ser perseguido por não pertencer a um grupo, classe, etnia, gênero ou crença religiosa. A mediação pode, desta forma, ser também uma afirmação de que todo ser humano tem valor. E tem um valor muito além dos seus botões, da limpeza de sua roupa, de seu empreendimento ou de onde estudou.


*André Gomma de Azevedo é Senior Research Fellow na Universidade de Harvard. Professor Adjunto dos Programas de Inverno e Verão do Strauss Institute for Dispute Resolution – Pepperdine University (2014-2019). Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Mestre em Administração na Universidade de Harvard. Mestre em Direito pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Pesquisador visitante na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard (2016-2017).

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