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Prevenir também é mediar


Há alguns anos, um antigo cliente solicitou-me a elaboração do contrato de seu novo empreendimento. Ele e um grupo de amigos, todos profissionais liberais da mesma área, pretendiam desempenhar em conjunto suas atividades de forma inovadora: reuniram diversos serviços no mesmo espaço físico, facilitando e aprimorando os resultados para seus clientes. Para tanto, contrataram assessoria de marketing para pesquisa de mercado, criaram uma marca e abriram uma empresa. Chegaram até mim com o negócio “pronto” e com um modelo de contrato social disponibilizado por seu contador, certos de que seria algo muito simples, afinal, eles já tinham todas as definições.


Ao iniciar a elaboração do contrato, senti falta de reflexões mais profundas: aonde pretendiam chegar? Quanto projetavam crescer? Como seria a divisão de lucros e o pagamento de pró-labore (pagamento pelos serviços desenvolvidos pelos sócios)? Esse último ponto, particularmente, preocupava-me, diante da especificidade do negócio (congregação de profissionais liberais exercendo suas atividades laborativas, o que difere em muito da venda de um produto). Eles não souberam responder àquelas perguntas, pois não tinham ainda planejado norteadores futuros. Havia absoluta convicção do potencial do negócio, da capacidade técnica de todos os envolvidos, da ética e da amizade que os unia. Para eles, era o que bastava. Em resumo, eles não achavam relevante antecipar quaisquer outras questões; definiriam juntos os rumos, quando cada situação se apresentasse.


Cerca de dois anos depois, fui novamente procurada; dessa vez, para a rescisão do contrato. O pedido deixou-me surpresa, já que as notícias que chegavam a mim eram de um negócio bem estruturado e em crescimento. Conversei reservadamente com cada um deles e tomei contato com versões muito distintas. O único ponto de convergência de suas narrativas era quanto ao motivo da decisão de se desassociarem: inexistência de consenso acerca da divisão de lucros.


O contrato social retratou exatamente o que eles solicitaram: liberdade total para o rateio dos lucros, conceito que se mostrava perfeitamente adequado à parceria existente. Mais especificamente, a previsão era de que o lucro seria dividido em proporções a serem definidas caso a caso, “de acordo com o trabalho desempenhado por cada sócio”. Ao serem por mim questionados sobre os desafios de uma previsão tão ampla, eles combinaram como se daria o primeiro ano: os quatro amigos trabalhariam sempre juntos no planejamento e/ou execução de cada projeto ou, quando não possível, em duplas; todos os valores recebidos pela empresa seriam parcialmente retidos para custos e capital de investimento, sem qualquer pagamento de pró-labore; o valor restante, seria dividido entre eles em partes iguais, não importando quem trouxesse o cliente.


Tudo transcorreu muito bem no primeiro ano, mas, ao longo do segundo ano, o sócio José** sugeriu a revisão do rateio. Para ele, não mais fazia sentido uma divisão que desconsiderasse o profissional que captou e acompanhou mais ativamente o cliente. Ele gostaria que cada um fosse remunerado especificamente pelo trabalho desenvolvido. Os demais sócios ficaram profundamente incomodados com o pleito, que, na percepção deles, ignorava o fato de que, ao longo de todo o primeiro ano de trabalho, nenhum cliente fora trazido por José. “Por que mudar as regras exatamente no momento em que José passou a ser o principal prospector de clientes?”. Não parecia justo para eles. Além das distintas visões, os sócios tinham diferentes personalidades e formas de se expressar, o que também causou muito estranhamento; enquanto alguns distinguiam totalmente o negócio da amizade, outros tinham grandes dificuldades e sentiam-se pessoalmente ofendidos. A consequência foi o término da sociedade e da amizade.


Por muito tempo, essa história me acompanhou. O que poderia ter sido feito diferente? Algum cuidado poderia ter sido tomado?


Anos depois, encontrei-me em uma situação similar: duas amigas pediram meu auxílio para a definição dos detalhes de sua sociedade, que incluía a criação e a venda de roupas. A marca e o negócio em si já existiam, pertenciam à Maria, mas seriam ampliados com o ingresso de Juliana. As duas eram amigas de longa data e tinham muitos propósitos em comum. Fui inicialmente procurada por Maria, para quem era muito importante estabelecer algumas premissas, como, por exemplo, de que forma seriam solucionados eventuais impasses. Maria fazia questão de que fosse sempre dela a decisão final de todo o processo criativo. Mas como conversar sobre isso sem gerar desconfortos e parecer impositivo à Juliana? A relação era tão boa e o desejo de prosperidade tão genuíno de parte a parte, que faziam Maria duvidar da pertinência de ter uma conversa aparentemente difícil naquele momento.


A essa altura, após vivenciar a ruptura de José e de seus sócios e já conhecedora dos benefícios da facilitação de diálogo (no que eu me especializei entre um episódio e outro), tive condições de adotar postura diferente. Sugeri à Maria que convidasse Juliana para a definição prévia dos norteadores da relação que se inaugurava - a relação de sócias e parceiras comerciais, totalmente distinta da relação de amizade que nutriam – e coloquei-me à disposição para facilitar, se elas entendessem oportuno.


Acredito que mais movidas pela curiosidade a respeito de como eu poderia ajudá-las, as duas se disponibilizaram a participar de uma primeira reunião. A pergunta inicial de nosso encontro foi qual seria a pertinência de uma mediação, já que não havia qualquer conflito entre elas. Afinal, mediação ou facilitação de diálogo não se destina a quem vivencia conflito de alguma natureza? Não necessariamente.


Nossas conversas foram extremamente produtivas, pois pudemos alinhar as suas expectativas. Elas tiveram a oportunidade de refletir sobre o que era especialmente importante para cada uma e o que poderia ser flexibilizado, se necessário. Maria pôde, de forma muito natural, explicar para Juliana sua motivação quanto à concentração das decisões criativas: era a forma por ela idealizada de garantir a essência e a identidade da marca que criara. O que, num primeiro momento, poderia soar impositivo e fruto de falta de confiança, foi bem recebido por Juliana. Como contrapartida e a fim de possibilitar o equilíbrio necessário à continuidade da relação, fez todo sentido para as duas que as decisões administrativas ficassem concentradas em Juliana. Em seguida, elas definiram juntas quais decisões diziam respeito à “criação” e à “administração”. Ao final, elas redigiram um documento que retratou não apenas os norteadores, como as respectivas motivações, algo que, no futuro, elas possam reler e relembrar, afastando eventuais questionamentos.


Através de um diálogo assistido (por um mediador), Maria e Juliana preveniram futuros desentendimentos, medida que, talvez, evitasse o desfecho experienciado por José e seus sócios.


A mediação preventiva é pouco usual em nossa sociedade. Normalmente, solicitamos a intervenção de um mediador diante de um conflito instaurado e escalado, o que minimiza as chances de restabelecimento da relação. Ainda se recebe com espanto a sugestão de mediação em contextos não conflituosos, como se significasse, de alguma forma, antecipar um problema, quando, na verdade, seus benefícios podem ser enormes.


Entusiasmados com uma relação que se inicia (comercial, societária, afetiva, familiar etc.), frequentemente deixamos de checar se nossas pretensões correspondem ou ao menos são complementares a de nossos parceiros. A mediação preventiva oportuniza a reflexão sobre nossos próprios interesses e de todos os demais envolvidos, clareia as reais intenções, permitindo ajustes preliminares. Abre espaço para planejamento, para que se pensem temas sensíveis e estratégicos, afasta a possibilidade de futuras controvérsias.


Entre sócios que iniciam ou reformulam sua parceria, como nos dois casos narrados, pode-se discutir: as perspectivas individuais de crescimento do negócio; o retorno financeiro esperado por cada um; o tempo a ser disponibilizado ao empreendimento; o rateio de despesas e de lucros; a divisão de responsabilidades etc. Nas relações familiares e afetivas, os ganhos também podem ser imensos, pois oportuniza planejar ou reformular situações, como, por exemplo, a parceria parental dos genitores.


Em qualquer contexto, o impacto da mediação preventiva será o alinhamento de propósitos e a configuração de expectativas, o que torna maiores as chances de manutenção da relação pessoal, para muito além da relação societária ou afetiva. Quanto mais clareza se tem sobre as disponibilidades de cada um, menores as chances de frustração e de ruptura litigiosa, maior o potencial de subsistência e de reajustes da relação ao longo do tempo.


*Mia Reis Schneider, advogada, mediadora, professora da PUC-Rio, cocoordenadora do Grupo Interdisciplinar de Mediação de Conflitos – GIMEC da PUC-Rio, conselheira consultiva da Comissão Especial de Mediação e Conciliação do Conselho Federal da OAB.


**Os personagens e casos narrados foram descaracterizados.



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