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Um genuíno pedido de desculpas


Muito se fala sobre arrependimento e desculpas, não à toa. Reflito sobre a banalização do ato, por vezes mecânico, que redunda num gesto de fria polidez, por vezes de indiferente civilidade ou mero acerto de contas. Então, ao presenciar um genuíno pedido de desculpas e o respectivo perdão pelo mal causado, mudei meu olhar sobre liberdade e sobre o potencial transformador do ser humano. Foi uma experiência singular, que ora divido com vocês.


Exercendo a mediação judicial, como voluntária, em um Juizado Especial Criminal do Rio de Janeiro, lidamos com delitos de pequeno potencial ofensivo: brigas de vizinhos, ofensas entre amigos nas redes sociais, famílias que judicializam suas mazelas, entre outros. Nas cidades modernas, desprezam-se as ferramentas de comunicação e muitos conflitos, do dia a dia, são levados ao Tribunal. Em muitos casos, o juiz não pode solucionar as rupturas sociais. O processo judicial acaba por não dar respostas à efetiva pacificação. E a escalada de tensão prossegue.


Tive o privilégio de mediar e ajudar a encerrar um conflito entre porteiro e moradora de um prédio, que trago hoje para vocês. A experiência enriqueceu-me como mediadora e, em especial, como pessoa. O relato, claro, não substitui a vivência, tampouco as palavras traduzem o impacto do que presenciamos. Mas, preciso contar.


Tratava-se de um caso de assédio sexual. Após o discurso de abertura, com as explicações sobre como a mediação se processava, a dupla de mediadoras se deu conta da necessidade de mais privacidade. Valemo-nos de sessões privadas com os mediandos. O desconforto no ar era palpável e um ambiente mais relaxado poderia ajudar. Assim, convidamos a ofendida a ficar conosco e o alegado ofensor para aguardar a sua vez.


Teresa** contou-nos que era do interior do estado e que estava morando há pouco tempo no Rio, em Copacabana, no prédio onde João era vigia noturno. Tinha batalhado muito para conseguir um emprego e podia pagar o aluguel do pequeno apartamento onde estava. Numa noite, tinha sido convidada por amigos para um chopp. Desceu, bem arrumada, para a portaria do prédio, enquanto aguardava a sua carona.


João**, que estava na portaria, alertou que sua saia estava suja, que visse no espelho, para onde ela se dirigiu a fim de checar. Qual não foi sua surpresa ao ser importunada pelo porteiro, que levantou sua saia e a assediou, passando a mão em suas partes íntimas. Não conseguiu reagir de imediato, mas, tão logo se recuperou do susto, subiu às carreiras de volta ao seu apartamento, em choque. Em seguida, procurou a síndica do prédio para relatar o ocorrido, mas sua versão não foi aceita. As câmaras do prédio não mostravam nenhum movimento estranho na hora, João era um funcionário exemplar, de muitos anos de trabalho no prédio, sem qualquer queixa de moradores. Ao ser indagado sobre o ocorrido, João negou veementemente.


Teresa afirmava que as câmeras não haviam registrado o ataque, porque, onde estava o espelho, não havia nenhuma. João sabia disso, por isso a alertou para que fosse até o canto. Tinha consciência de que não havia qualquer prova em desfavor de João, mas não importava. Ir à Delegacia e relatar o ocorrido era o certo a fazer. E falar sobre o ocorrido era importante para ela. Ser ouvida.


Por sua vez, também em sessão reservada, reiterada a confidencialidade do momento, João negava qualquer inadequação de sua conduta. Parecia bem à vontade. Ao relatar o que acontecera na noite em questão, dizia que, de fato, a saia de Teresa estava suja e que a história do assédio seria para prejudicá-lo e arrancar algum dinheiro. Era nova no prédio, ninguém a conhecia, não simpatizava com ele e estava atrás de uma indenização qualquer. João afirmava ser querido pelos moradores, que poderiam inclusive testemunhar a seu favor, pois jamais tinha se envolvido em qualquer confusão no condomínio. Conforme menção da síndica, era bom funcionário e solícito.


Enfim, versões opostas. Nenhuma evidência da ocorrência ou não do relatado no Boletim. Considerando o prosseguimento do processo, provavelmente, não se chegaria a lugar algum. Nenhuma possibilidade de acordo foi trazida por qualquer dos dois que permaneciam irredutíveis.


Nesse momento, reunimos Teresa e João, visivelmente constrangidos, para encerramento da mediação.


Teresa, então, se volta para João, serena, dizendo que somente eles dois sabiam exatamente o que havia ocorrido naquela noite. Ela sabia que não provaria o que aconteceu, mas não podia calar, porque tinha uma filha de cinco anos. Devia isto a ela.


Nesse momento, João vira-se para Teresa e diz que também tinha uma filha de cinco anos e que não saberia qual seria sua reação se fizessem com ela o que ele fez à Teresa. Mas, certamente, não aceitaria também. Pediu desculpas. Reconheceu que foi horrível. Abaixou a cabeça.


Naquele momento, dois seres humanos se encontraram e se olharam. Teresa perdoou João. Falaram das filhas, disseram seus nomes. Sorriram. Nada alterou o ocorrido. O pedido de desculpas mudou a todos.


Nada ficou registrado na Ata da Sessão, somente que os mediandos haviam alcançado o entendimento e pediram o encerramento do processo.


Em nossas almas, ficou o impactante registro de duas pessoas que reciprocamente se libertaram através do diálogo.


*Sócia de Fonseca e Salles Lima Advogados Associados. Advogada, graduada pela UERJ. Pós-graduada em Direito Civil e especialização em Direito Civil-Constitucional. Mediadora com formação MEDIARE em Mediação de Conflitos e em Mediação e Negociação pelo Program on Negotiation at Harvard Law School Executive Education. Mediadora Judicial. Mediadora Avançada certificada pelo ICFML. Advogada Certificada em Mediação pelo ICFML. Vice-Presidente do Programa DPC do ICFML. Membro da Comissão de Mediação da OAB/RJ e integrante de diversas listas de mediadores no Brasil, entre elas: CBMA, CAM-CCBC, FGV, MEDIARE e OABRJ.


**Os nomes dos envolvidos foram alterados.

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