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Mediação e Idosos. Está na hora de dar voz à experiência.

Beatriz B. de M. Monnerat Fraga*




Pandemia. Vivemos essa realidade há um ano e três meses. Temos certeza de que, lá em março de 2020, recém-saídos de um feriado de carnaval, não poderíamos mensurar o que estava por vir... Fato é que nesses últimos meses nos deparamos com muitas situações que nunca pensamos em vivenciar e muitas emoções que talvez nunca tivéssemos sentido por um período tão longo.


Não foi diferente na Mediação. Durante esse último um ano e três meses ficamos perdidos no início, paralisados, nos reinventamos, aprendemos novas tecnologias, nos acostumamos e conseguimos seguir em frente dentro desse novo cenário mundial. Estreamos como mediadores online e os mediandos como participantes online também.


Nesse oceano de mudanças globais que nos foram impostas, vieram também as mudanças nos contextos sociais e familiares e dentro da perspectiva familiar o crescimento bem significativo de casos que envolvem idosos. Foram muitos atendimentos em Mediação sobre esse tema, e essas múltiplas experiências com cada família nos trouxeram um aprendizado enriquecedor. Diversos aspectos foram trazidos para a mesa de Mediação: cuidados diários, cuidados médicos, manutenção financeira, interdição, convivência, divórcio e partilha. E, no meio de tantas mudanças, novidades e adaptações, um caso nos chamou atenção.


Estávamos em setembro de 2020, há seis meses, portanto, do inicio da pandemia. Eram seis filhos. Uma delas procurou atendimento em Mediação alegando que o pai de 90 anos estava passando por maus tratos e gostaria de conversar em Mediação com os demais irmãos. Caso recebido, mediação agendada e na data e hora previstos estavam lá os seis irmãos. Maria, a irmã que procurou o atendimento, iniciou sua fala dizendo o quanto estava impressionada com a magreza de seu pai, o Seu Amadeu. Que quando ela foi visitá-lo na casa de João, seu outro irmão com quem o pai morava, ficou extremamente impactada e, por isso, resolveu levá-lo para a sua casa para ir a médicos, fazer exames, se alimentar bem etc. e tal. Por outro lado, João dizia que o pai não aceitava as limitações impostas pela pandemia, que não gostava da comida dele e que não tinha a vida à toa e que precisava trabalhar diariamente. Falou em alto e bom tom que o pai tinha seis filhos e que todos deveriam se preocupar e se ocupar e não só ele.


Entre os irmãos havia dois que moravam fora do estado do RJ e uma que morava em outra cidade, apesar de no mesmo estado. Todos eles com seus trabalhos, maridos, esposas, filhos, periquitos e papagaios. Todos concordando que agora tinham um problema para resolver: quem cuidaria do Seu Amadeu?


Diante das falas de todos e da pergunta comum a todos indaguei: “Mas como está o Seu Amadeu? Acamado? Ele é interditado?” E para minha surpresa ele, em pessoa, pega o celular da mão de Maria e responde: “Não, minha senhora! Eu estou aqui! Vivinho da Silva! E assistindo a toda essa palhaçada!” Confesso que tomamos um susto, porque as narrativas não nos levavam a crer nenhum minuto sequer que Seu Amadeu fosse uma pessoa ativa e consciente. Nós nos desculpamos com ele e dissemos que estávamos entendendo as coisas de maneira errada. Então pedimos ao Seu Amadeu que falasse o porquê de ele estar achando tudo aquilo uma “palhaçada”.


E assim ele começou contando que até março daquele ano a vida dele era uma beleza! Que diariamente pegava o ônibus para ir trabalhar. Trabalhava como despachante num escritório de advocacia. Todo dia na hora do almoço ia comprar sua quentinha na barraca da Sra. Cris e que, ao final do dia, voltava, de ônibus, para sua casa após o trabalho. De segunda a sexta era isso. Aos sábados e domingos saia para dar uma volta, comprava sua comida com a Sra. Cris, via os amigos e depois voltava para casa e via sua TV. Só que com a pandemia teve que ficar trancafiado em casa e sua vida virou um inferno! (palavras dele). Passava o dia inteiro em casa, sem fazer nada e como não sabia cozinhar comia os lanches que seu filho João comprava para eles.


Antes mesmo que Seu Amadeu pudesse terminar sua fala, Maria interrompeu dizendo que João não se importava com o pai, que o deixava “largado”, sem comer direito, sem atenção. E, assim, o tumulto começou com João contra-argumentando e reagindo ao que Maria falava, alguns irmãos concordando com ele e outros com Maria... Até que perguntei a Maria no que ela gostaria que a Mediação auxiliasse? Por que ela procurou a Mediação? E ela trouxe todo um cronograma pronto de quem deveria ficar com o pai durante a semana, quem ficaria nos finais de semana, quem pagaria os custos fixos de remédios, supermercado, funcionária, etc.


Imediatamente Seu Amadeu novamente interveio, dizendo: “Mas quem te disse que é isso que eu quero? Acho que vocês estão esquecendo de perguntar a quem interessa: a mim!!!” Em um período de menos de duas horas, Seu Amadeu, do alto de sua experiência de vida, nos relembrou um princípio basilar da Mediação, o princípio da autonomia da vontade, além de aplicar uma ferramenta da Mediação, o teste de realidade, para lembrar a todos que ele vive, que é capaz e que tem autonomia em relação às questões da sua vida.


O caso caminhou por mais dez reuniões. No meio desse percurso, algumas reuniões individuais com Seu Amadeu e outras com seus filhos, alguns atendimentos jurídicos com especialistas para tirar dúvidas até que chegássemos a um acordo que refletia integralmente a vontade, os interesses e as necessidades de Seu Amadeu e o real entendimento de todos os seus filhos sobre conceitos tão importantes, mas que, infelizmente, muitas vezes são esquecidos dentro de uma cultura em que se está acostumado a resolver tudo para os idosos, assim como para as crianças, que são os conceitos de respeito, escuta, acolhimento, diálogo e construção de consenso.


A compreensão da complexidade das mudanças para cada individuo é muito importante para derrubar preconceitos, permite olhar para o outro com generosidade, abrindo os canais de afetividade e humanidade. Escutar o outro é respeito. Acolher as ideias do outro é respeitar sua autoria, sem infantilizações ou deméritos, um verdadeiro exercício de alteridade e, de fato, a prática da essência da Mediação.


Nota: Foram feitas adaptações e troca de nomes reais por fictícios no caso descrito no texto acima em respeito ao Princípio da Confidencialidade da Mediação.



*Beatriz Bezerra de Menezes Monnerat Fraga (@co.labore_mediacao) é advogada especialista em Mediação de conflitos familiares, empresariais e empresas familiares. Capacitada em Mediação de Conflitos pelo Mediare e pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, capacitada em Práticas Colaborativas no Direito de Família pelo IACP. Mediadora e supervisora do Mediare, mediadora sênior do TJ/RJ, mediadora da Câmara Institucional e Privada da OAB/RJ, mediadora extrajudicial na Co.Labore Mediação de Conflitos. Docente de cursos livres e palestras. Coautora do livro “Mediação de conflitos para iniciantes, praticantes e docentes” da Ed. JusPodium.







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