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O Poder do Diálogo na Relação Familiar

Ana Pazos*





Chego ao CEJUSC (Centro Judiciário de Solução de Conflito e Cidadania) e vejo no corredor uma senhora que aparentava ter, aproximadamente, 80 anos acompanhada de outras oito pessoas, que julguei serem seus parentes, agitadas, aguardando atendimento. Para minha surpresa, estavam designados para minha sala.


Ao entrarem, todos nervosos, exceto a idosa, que se mostrava alheia ao burburinho dos filhos. Tratava-se de uma ação do JeCrim (Juizado Especial Criminal), por abandono e maus tratos a idoso. Os filhos desconheciam o teor dos fatos relatados e preocupavam-se em dizer, repetidamente, que tratavam muito bem a genitora, que ela não sofria agressões físicas.


Dona Severina relatou que contava com 84 anos, era viúva, tinha oito filhos, era pensionista e que desejava viver com dignidade e conforto, o que para ela significava tomar banho quente, alimentar-se todos os dias e ter uma cama só para si.


Seu desejo de conforto não exigia muito, apenas o básico de uma vida digna para quem viveu exclusivamente para servir a família.


Os filhos ficaram visivelmente incomodados com a declaração simplória da mãe, que vestia um largo e surrado vestido, e um velho chinelo Havaianas. Cabelos grisalhos ajeitados em um turbante e nenhuma outra vaidade evidente. Os filhos, todos aparentavam ter condição econômica superior à da mãe, alguns deles com curso superior, todos exerciam atividade laborativa, exceto uma, que era portadora de esquizofrenia e vivia com a mãe.


Ao indagar sobre a situação, foi relatado por dona Severina que cinco dos oito filhos residiam no mesmo terreno que a genitora, uma, inclusive, ocupava parte do imóvel destinado à mãe, que fora separado por uma parede, e o piso superior. Outros quatro filhos tinham suas casas construídas no terreno. A filha esquizofrênica, por não ter condições financeiras e psicológicas de morar sozinha, permanecia com a mãe.


Ocorre que, com a divisão da casa, restou para a dona Severina um quarto minúsculo, banheiro e cozinha. No quarto, havia espaço para somente uma cômoda e uma cama de solteiro que dividia com a filha, e, por vezes, acabava por dormir no chão, o que lhe causava muitas dores. Como o dinheiro da pensão era pouco, muitas vezes não conseguia pagar a conta de luz, e o fornecimento era interrompido, e o banho, gelado. Os filhos e netos que residiam no mesmo terreno passavam meses sem lhe fazer uma visita ou convidá-la para uma refeição. A filha esquizofrênica, quando em crise, comia tudo que dona Severina comprava para a manutenção do mês. E, em alguns momentos, dona Severina se alimentava com o que lhe era dado por vizinhos ou pela igreja que frequentava. Aliás, foi em uma ação social da Defensoria Pública realizada no pátio da Igreja que dona Severina fez o relato que considerou ser de abandono e maus tratos.


A essa altura, os filhos já estavam desconfortáveis com a fala de dona Severina. Alguns com os olhos cheios d’água e, creio, envergonhados por se manterem alheios àquela situação. Identifiquei que todos praticavam a escuta ativa, estavam atentos aos sentimentos e às necessidades expressados pela genitora e, até aquele momento, não observados por eles. Não interromperam, apenas escutaram com atenção e respeito a fala.


Dona Severina encerrou e todos permaneceram em silêncio. Silêncio necessário para reflexão do papel de cada um naquele contexto. Não interrompi o silêncio. Era essencial para que cada um percorresse seu mundo interior, o chamado silêncio da pesquisa[1].


Em seguida, foi pedido que cada um manifestasse o que havia sentido em relação ao que acabara de ser relatado. Foi uma pergunta aberta e reflexiva, com objetivo de levar os filhos a refletirem sobre algo que não haviam pensado anteriormente. As respostas foram uníssonas no sentido de que desconheciam aquela situação e de que lhes causava dor, angústia e vergonha ser preciso uma ação externa para que enxergassem a própria família.


Perguntei, então, como podiam contribuir para mudar aquela situação e proporcionar a vida digna que dona Severina almejava. Nessa fase, foi desenvolvido um brainstorm[2] na busca por soluções criativas, estimulando o maior número de propostas. E com as muitas ideias trazidas por cada filho, estimulei a verificarem quais melhor atendiam aos interesses de dona Severina e como efetivá-las. Quem seria responsável por cada ação para que o acordo se concretizasse.


Durante a geração de opções, dona Severina se emocionou ao ver a família reunida buscando ampará-la. Aquela mulher de 84 anos, que relatou os fatos de cabeça baixa, sentindo-se abandonada, aparentando ter medo da reação dos filhos, agora olhava para cada um deles com os olhos cheios de lágrimas. A cada item que acordavam, dona Severina era questionada se estava de acordo e agradecia imensamente cada demonstração de preocupação e de afeto dos filhos.


Ao final do acordo, os filhos posicionaram-se ao redor de dona Severina e lhe deram um forte abraço e um pedido de desculpas por não estarem atentos às necessidades dela.


Agradeceram a oportunidade de participar da sessão de mediação, que tornou possível o restabelecimento do diálogo entre os irmãos e a mãe, e resgatou os laços de família, o que, certamente, a imposição de uma pena pelo JeCrim não promoveria, ao contrário, condenaria dona Severina ao eterno distanciamento afetivo dos filhos pela imposição da pena.


A mediação como método de solução de conflito promove o restabelecimento do diálogo, o protagonismo dos envolvidos na construção da solução tornando-a exequível, restaura relações e evita a escalada do conflito e conflitos futuros. É um método que estimula o exercício da cidadania e transforma a sociedade. No caso específico dessa família, a mediação permitiu que se encontrassem novamente e construíssem o novo caminho.


[1] GARRIDO, Armando Miguel. Tradução: Salomon, Patrícia. O Valor do Silêncio no Processo de Mediação – Um meio para paz. Gráfica Munro Editora. 2004. [2] Brainstorm: reunião do maior número possível de ideias com objetivo comum de solucionar um problema.



* Mediadora de Conflitos certificada pelo ICFML, inscrita no CNJ, advogada, pós-graduada em Mediação de Conflitos Escolares, Terceiro Setor e Responsabilidade Social, Processo Civil, Direito Público. LLM em Mediação, Gestão e Resolução de Conflitos, MBE em Meio Ambiente.


** Crédito da foto - Aniella (@aniellafotografia)

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